Os Gregos Antigos e a Politica
«[...] Os Gregos tinham uma estima reduzidíssima pela «vida privada» e deixavam as questões - domésticas, familiares, ao cuidado das mulheres, cuja condição na polis era decididamente secundária:
para um grego a única coisa que contava era o que realizava em público, competindo e colaborando entre iguais, quer em discussões sobre temas políticos ou jurídicos, quer em diversões colectivas (tragédias, comédias, olimpíadas...), quer no campo de batalha.
A nós, indivíduos de hoje, interessa-nos numa medida muito maior a nossa actividade privada [...]. Os Gregos eram acima de tudo «políticos», ou seja, viviam na dependência da polis e era essa a sua ocupação principal; nós somos acima de tudo particulares e por isso a nossa entrega à coisa pública é bastante limitada.(...)».
(...) Os Gregos sentiram paixão pelo que é - humano, pelas suas capacidades, pela sua energia construtiva (e destrutiva!), pela sua astúcia e pelas suas virtudes... sem votarem ao desprezo sequer os seus vícios. Houve outros povos que se sentiram espantados diante dos prodígios da natureza ou que cantaram a misteriosa glória dos deuses; mas Sófocles resumiu a opinião dos seus compatriotas ao escrever uma das suas tragédias: «De todas as coisas dignas de admiração que há no mundo, nenhuma é tão admirável como o homem.» Por isso, os Gregos inventaram a polis, a comunidade de cidadania em cujo espaço artificial, antropocêntrico, não governa a necessidade da natureza nem a vontade enigmática dos deuses, mas a liberdade dos homens, quer dizer: a sua capacidade de raciocinarem, de discutirem, de escolherem e revogarem os dirigentes, de criarem problemas e de adiantarem soluções.
O nome por que hoje conhecemos essa invenção grega, a mais revolucionária politicamente falando que jamais houve na história humana, é democracia.
A democracia grega estava submetida ao princípio de isonomia: ou seja, as mesmas leis valiam para todos, pobres ou ricos, nascidos de boa cepa ou filhos de pais humildes, vivos de espírito ou tolos. Acima de tudo, as leis eram inventadas por aqueles mesmos que teriam que se lhes submeter: era preciso, portanto, ter cuidado na assembleia e não aprovar leis más, pois o indivíduo que o fizesse bem poderia vir a ser a sua primeira vítima...Na cidade ninguém estava acima da lei e a lei (a mesma lei) tinha que ser obedecida por todos. [...] Os atenienses antigos levavam tão a sério a igualdade política dos cidadãos, e estavam tão convencidos de deverem obediência apenas às leis e não a pessoas, por muito «especiais» que estas últimas fossem (os gregos não aceitavam que houvesse especialistas em mandar)... que a maioria das magistraturas e outros cargos públicos da polis eram decididos por sorteio! Como todos os cidadãos eram iguais, como ninguém podia negar-se a cumprir as suas obrigações políticas para com a comunidade (toda a gente participava nas decisões e podia ocupar lugares de autoridade, mas era obrigatório decidir e comandar quando fosse esse o caso), tirar à sorte os cargos políticos parecia aos gregos a melhor das soluções.
Isonomia? A mesma lei para todos? Igualdade Política? Já te estou a ouvir protestar. Como poderia ser verdadeira essa igualdade, se havia escravos? Com efeito, os escravos não participavam na vida política grega. Nem tão-pouco as mulheres. Tens razão no teu protesto, mas não esqueças que desde a época grega longínqua passaram muitas centenas de anos, tendo sido reexaminadas numerosas crenças. Os pioneiros atenienses nunca sustentaram que todos os seres humanos têm direitos políticos iguais; o que inventaram e estabeleceram foi que todos os cidadãos atenienses tinham direitos políticos iguais. E sabiam que nem toda a gente tinha a cidadania ateniense: para se ser cidadão de Atenas era necessário ser-se do sexo masculino, ter-se uma certa idade, não se ser escravo, ter-se nascido na polis, etc. Mas todos os que reuniam tais condições eram politicamente iguais. (...)
Nos reinos como o egípcio ou o persa, o sistema político é de certo modo parecido com uma pirâmide: o faraó ou o Grande Rei ocupam o vértice superior, abaixo estão os nobres, os sacerdotes, os guerreiros, os grandes mercadores, etc., até chegarmos à base, ocupada pelo povo miúdo. O poder irradiava de cima para baixo, até chegar aos que recebiam ordens de toda a gente sem poderem dá-las a ninguém, e estes eram justamente a grande maioria da população. Em contrapartida, o poder político entre os gregos parecia-se antes como um círculo: na assembleia todos se sentavam equidistantemente de um centro onde simbolicamente ficava o poder de decisão. (...) Cada qual podia tomar a palavra e dar a sua opinião, detendo, enquanto o fazia, uma espécie de ceptro que indicava o seu direito a falar sem ser interrompido. Nos outros reinos, os piramidais, só o rei tinha ceptro e poder de decisão; entre os gregos, o ceptro era rotativo, passando de mão em mão através da assembleia circular, e as decisões eram tomadas depois de ouvidos todos os que tivessem alguma coisa a dizer.[...] Não te esconderei que desde o começo a invenção democrática contou com adversários sérios, tanto no plano teórico como no prático. A verdade é que a democracia assenta num paradoxo que se torna evidente por pouco que se reflicta no assunto: todos conhecemos mais pessoas ignorantes do que sábias e mais pessoas más do que boas... portanto, é lógico supor que a decisão da maioria terá mais de ignorância e de maldade do que do contrário. Os inimigos da democracia insistiram desde o primeiro momento em que confiar no grande número era confiar nos piores. Os maiores filósofos de Atenas, como Sócrates e o seu discípulo Platão, assinalaram penetrantemente que as pessoas não costumam ter outros conhecimentos além dos de «trazer por casa», assentes em observações apressadas do quotidiano e no que ouvem dizer os outros (...) Suponho que muitas destas objecções antidemocráticas nada têm de surpreendente (...) são objecções tão velhas como a própria democracia. (...)
A invenção democrática, esse círculo em cujo centro estava o poder, essa assembleia de vozes e de discussões teve como consequência que os cidadãos - os submetidos à isonomia, à mesma lei - passaram a ver-se uns aos outros. As sociedades democráticas são mais transparentes do que as outras, às vezes transparentes até à indecência: somos todos espectáculos uns para os outros. Os reis absolutos da Antiguidade viviam em palácios inacessíveis: só apareciam em público rodeados da maior majestade, sobre-humanos, hirtos, e procuravam parecer acima das paixões e necessidades físicas de qualquer pessoa como nós. Os vassalos baixavam servilmente a cabeça quando o rei passava, sem ousarem levantar os olhos. Nas sociedades do tipo pirâmide de que te falei, cada grupo social ignorava o género de vida que os seus superiores levavam e não se atrevia a julgar os vícios e virtudes dos superiores pela mesma bitola que lhe servia para julgar os membros da sua classe. Entre os gregos, em contrapartida, cada um dependia dos outros; as competências e os méritos não eram reconhecidos à partida como posse de ninguém, mas tinham que ser mostrados...e demonstrados.” F SAVATER, Política para um Jovem, Editorial Presença, pp. 54 a 59