CIDADANIA, TOLERÂNCIA, AMOR E GENEROSIDADE

CIDADANIA, TOLERÂNCIA, AMOR E GENEROSIDADE

CIDADANIA, TOLERÂNCIA, AMOR E GENEROSIDADE


 O problema da tolerância


 «O problema da tolerância só se põe em questões de opinião. Por isso se põe tão frequentemente, ou mesmo quase sempre. [...] A mesma proposição que, de um ponto de vista científico, não depende da tolerância, pode depender dela de um ponto de vista filosófico, moral ou religioso. [...] A Bíblia não se demonstra nem se recusa: é, pois, necessário acreditar nela, ou tolerar que se acredite. Nisto reencontramos o nosso problema. Se devemos tolerar a Bíblia, porque não Mein Kampf [a ideologia nazi]? E, se toleramos Mein Kampf, porque não o racismo, a tortura, os campos de concentração? 
 Uma tal tolerância universal seria, por certo, moralmente condenável: porque esqueceria as vítimas, abandonando-as à sua sorte, deixando perpetuar o seu martírio. Tolerar é aceitar aquilo que se poderia condenar, é deixar fazer o que se poderia impedir ou combater. É, portanto, renunciar a uma parte do nosso poder, da nossa força, da nossa cólera... Assim se toleram os caprichos de uma criança ou as posições de um adversário. Mas só há nisto virtude na medida em que chamamos a nós, como se costuma dizer, em que ultrapassamos os nossos interesses, o nosso sofrimento, a nossa impaciência. A tolerância vale apenas contra si e a favor de outrem. Não existe tolerância quando nada temos a perder, e menos ainda quando temos tudo a ganhar, suportando, ou seja, nada fazendo. [...]  Tolerar o sofrimento dos outros, a injustiça de que não somos vítimas, o horror que nos poupa não é tolerância, mas egoísmo, indiferença, ou mesmo pior. Tolerar Hitler é tornar-se cúmplice dele, pelo menos por omissão, por abandono, e esta tolerância era já colaboração. Antes o ódio, a fúria, a violência, do que esta passividade diante do horror, do que esta aceitação vergonhosa do pior! Uma tolerância universal seria tolerância do atroz: atroz tolerância! 
 Levada ao limite, a tolerância "acabaria por negar-se a si mesma", deixando as mãos livres àqueles que querem suprimi-la. A tolerância, portanto, só vale dentro de certos limites, que são os da sua própria salvaguarda e da preservação das suas condições de possibilidade. É o que Karl Popper denomina "o paradoxo da tolerância": "Se formos de uma tolerância absoluta, mesmo com os intolerantes, e não defendermos a sociedade tolerante contra os seus assaltos, os tolerantes serão aniquilados e com eles a tolerância." Isto só vale enquanto a humanidade é aquilo que é, conflituosa, passional, dilacerada, mas por isso mesmo tem valor. Uma sociedade onde fosse possível uma tolerância universal deixaria de ser humana e, de resto, não precisaria de tolerância.
 Ao contrário do amor e da generosidade, que não têm limites intrínsecos, nem finitude que não a nossa, a tolerância é, por conseguinte, essencialmente limitada: uma tolerância infinita seria o fim da tolerância! Não existe liberdade para os inimigos da liberdade? Não é assim tão simples. Uma
 
virtude não poderia acantonar-se na intersubjectividade virtuosa: aquele que só com os justos é justo, só com os generosos, generoso, só com os misericordiosos, misericordioso, não é nem justo, nem generoso, nem misericordioso. Tão-pouco é tolerante aquele que o é apenas com os tolerantes. Se a tolerância é uma virtude, como creio e como todos pensam de modo geral, ela vale portanto por si mesma, inclusivamente para os que não a praticam. A moral não é nem um negócio nem um espelho. É verdade que os intolerantes não poderiam queixar-se, se fôssemos intolerantes com eles. Mas onde se viu que uma virtude dependa do ponto de vista dos que a desconhecem? O justo deve ser guiado "pelos princípios da justiça, e não pelo facto de o injusto poder queixar-se".  Assim também o tolerante, pelos princípios da tolerância. Se não devemos tolerar tudo, porque seria votar a tolerância à perdição, tão-pouco devemos renunciar a toda a tolerância para com aqueles que não a respeitam. Uma democracia que proibisse todos os partidos não democráticos seria muito pouco democrática, do mesmo modo que uma democracia que os deixasse fazer tudo seria demasiado má, estando por isso condenada: porque renunciaria a defender o direito com a força, sempre que necessário, e a liberdade com a coacção. O critério não é aqui moral, mas político.  O que deve determinar a tolerância deste ou daquele indivíduo, grupo ou comportamento, [...] é o perigo efectivo que implicam: uma acção intolerante, um grupo intolerante, etc., devem ser interditos se, e só se, ameaçam efectivamente a liberdade ou, em geral, as condições de possibilidade da tolerância. Numa República forte e estável, uma manifestação contra a democracia, contra a tolerância ou contra a liberdade não basta para a pôr em perigo: não há, portanto, motivos para a proibir, e pretendê-lo seria faltar à tolerância. Mas se as instituições se encontram fragilizadas, se a guerra civil ameaça ou começou já, se os grupos facciosos ameaçam tomar o poder, a mesma manifestação pode tornar-se um perigo: pode então vir a ser necessário proibi-la e impedi-la, mesmo à força, e seria uma falta de firmeza ou de prudência recusar-se a considerar esta possibilidade. [...]  Democracia não é fraqueza. Tolerância não é passividade. [...] uma tolerância universal não seria, portanto, nem virtuosa nem viável. Ou por outras palavras: existem, de facto, coisas intoleráveis, mesmo e sobretudo para o tolerante! Moralmente, é o sofrimento de outrem, a injustiça, a opressão, quando poderiam ser impedidos ou combatidos por um mal menor. Politicamente, é tudo o que ameaça efectivamente a liberdade, a paz ou a sobrevivência de uma sociedade (o que supõe uma avaliação, sempre incerta, dos riscos) e, portanto, é também tudo o que ameaça a tolerância, quando esta ameaça não é a simples expressão de uma posição ideológica (a qual poderia ser tolerada), mas de um perigo real (que deve ser combatido e à força, se necessário). Isto deixa lugar à casuística, no melhor dos casos, e à má-fé, no pior, deixa lugar à democracia, com os seus riscos e as suas incertezas, que contudo valem mais que o conforto e as certezas do totalitarismo.[...]
 
 O que é a tolerância? Respondia Alain: "Um género de sabedoria que vence o fanatismo, esse temível amor da verdade." Deveremos então deixar de amar a verdade? Seria oferecer um belo presente ao totalitarismo, e quase impedir-nos de combatê-lo!
 Longe de ser necessário renunciar a amar a verdade para ser tolerante, é pelo contrário este amor - mas desiludido - que nos fornece as principais razões de sê-lo. A primeira destas razões é que amar a verdade, sobretudo neste campo, é também reconhecer que nunca a conhecemos absolutamente nem com toda a certeza. Como vimos, o problema da tolerância só se põe em questões de opinião. Ora, o que vem a ser uma opinião senão uma crença incerta ou, em todo o caso, sem outra certeza que não subjectiva? O católico bem pode estar subjectivamente certo da verdade do catolicismo. Mas, se for intelectualmente honesto (se amar mais a verdade do que a certeza), deverá reconhecer que é incapaz de convencer um protestante, ateu ou muçulmano, mesmo cultos, inteligentes e de boa-fé. Por mais convencido que possa estar de ter razão, cada qual deve, pois, admitir que não pode prová-lo, permanecendo assim no mesmo plano que os seus adversários, tão convencidos como ele e igualmente incapazes de convencê-lo... A tolerância, como força prática (como virtude), funda-se deste modo na nossa fraqueza teórica, ou seja, na incapacidade em que estamos de atingir o absoluto. [...] 
 A verdade, é certo, impõe-se a todos, mas não impõe coisa alguma. Ainda que Deus existisse, porque haveríamos de aprová-lo sempre? E que direito tenho eu, quer Ele exista quer não, de impor o meu desejo, a minha vontade ou os meus valores àqueles que não os partilham? São necessárias leis comuns? Sem dúvida, mas apenas nos domínios que nos são comuns! Que me importam as bizarrias eróticas de fulano e sicrano, se praticadas entre adultos que livremente as aceitam? Quanto às leis comuns, se por certo são necessárias (para impedir o pior, para proteger os fracos...), cabe à política e à cultura velarem por isso, as quais são sempre relativas, conflituosas, evolutivas, e não a alguma verdade absoluta que se nos impusesse e que, a partir daí, poderíamos impor legitimamente aos outros. A verdade é a mesma para todos, mas não o desejo, não a vontade. [...]
 Podemos perguntar, finalmente, se a palavra tolerância é, de facto, a que convém: há nela algo de condescendente, e até de desprezador, que incomoda. [...]Tolerar as opiniões dos outros não é já considerá-las como inferiores ou faltosas? Não se pode tolerar, em rigor, senão o que se teria o direito de impedir: se as opiniões são livres, como devem ser, não dependem da tolerância! Daqui um novo paradoxo da tolerância, que parece invalidar a noção. Se as liberdades de crença, de opinião, de expressão e de culto são liberdades-direito, então não precisam de ser toleradas, mas simplesmente respeitadas, protegidas, celebradas. [...] Por isso damos o nome de tolerância àquilo que, se fôssemos mais lúcidos, mais generosos, mais justos, deveria chamar-se respeito, ou simpatia, ou amor... É, portanto, a palavra que convém, porque não há amor, nem simpatia, nem respeito. [...]
 
 "Tolerar não é, evidentemente, um ideal", observava já Abauzit, "não é um máximo, mas um mínimo". Claro, mas é melhor que nada ou que o seu contrário! - Que o respeito ou o amor valem mais, é evidente. Se, contudo, a palavra tolerância se impôs, foi certamente porque nos sentimos muito pouco capazes de amor ou de respeito quando se trata dos nossos adversários - ora, é, em primeiro lugar, para eles que a tolerância é necessária... "Enquanto não desponta o belo dia em que a tolerância se tornará amável", conclui Jankélévitch, "diremos que a tolerância, a prosaica tolerância é o que de melhor podemos fazer! 
 A tolerância - por muito pouco exaltante que seja a palavra - é pois uma solução sofrível; entretanto, ou seja, até que os homens possam amar, ou simplesmente conhecer-se e compreender-se, podemos dar-nos por felizes por começarem a suportar-se. A tolerância, portanto, é um momento provisório". Que este provisório está para durar, é bem claro: e, se cessasse, seria de temer que lhe sucedesse a barbárie, e não o amor! [...]
 Esta pequena virtude convém-nos: está ao nosso alcance, o que não é assim tão frequente, e parece-nos que alguns dos nossos adversários não merecem mais... Assim como a simplicidade é a virtude dos sábios e a sabedoria a dos santos, a tolerância é sabedoria e virtude para aqueles -todos nós - que não são nem uma nem outra coisa. Pequena virtude, mas necessária. Pequena sabedoria, mas acessível.» (André COMTE-SPONVILLE, Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Lisboa : Ed. Presença, 1995,  170-185