A noção normativa de cidadania
«Em filosofia política usa-se a expressão «cidadania» num sentido diferente do habitual: Em contextos filosóficos, a cidadania refere-se a um ideal normativo substancial de pertença e participação numa comunidade política. Ser um cidadão, neste sentido, é ser reconhecido como um membro integral e igual da sociedade, com o direito de participar no processo político. Como tal, trata-se de um ideal distintamente democrático. As pessoas que são governadas por ditaduras monárquicas ou militares são súbditos e não cidadãos. Will Kymlicka, «Cidadania», 1998 Assim, nos países que não são democráticos a maior parte das pessoas são apenas súbditos e não cidadãos. Isto acontece porque nesses países a maior parte da população não é um “membro integral e igual da sociedade, com o direito de participar no processo político” — nesses países, não há eleições democráticas nem há mais de um partido político nem as pessoas se podem organizar livremente para formar um partido político nem podem dizer livremente o que pensam do seu governo nos jornais, etc. Esta noção de cidadania é normativa e não descritiva.
Numa afirmação descritiva pretende-se fazer corresponder a afirmação à realidade. Numa afirmação normativa pretende-se fazer corresponder a realidade à afirmação.
Por exemplo, a afirmação “O João fugiu da Maria” é uma afirmação descritiva: procura descrever a realidade. Mas a afirmação “O João não devia ter fugido da Maria” é normativa: procura dizer o que o João devia ter feito e não descrever o que ele fez.
A noção normativa de cidadania não procura reflectir o modo como as pessoas usam o termo “cidadania”. A noção normativa determina um ideal de cidadania a que as sociedades devem obedecer. Por isso, apesar de na realidade se chamar «cidadãos» às pessoas que vivem submetidas a ditaduras, não se está a usar o termo no seu sentido filosófico. No seu sentido filosófico, só podemos dizer que alguém é um cidadão se essa pessoa vive num país ou comunidade que lhe dá todos os direitos políticos. Como afirma Kant, “A capacidade de votar é um pré-requisito para se ser um cidadão”. “[...] a saúde e estabilidade de uma democracia moderna não depende apenas da justiça das suas instituições básicas mas também das qualidades e atitudes dos seus cidadãos: por exemplo, do seu sentido de identidade, e de como encaram formas potencialmente rivais de identidades nacionais, regionais, étnicas ou religiosas; da sua capacidade para tolerar e trabalhar com pessoas diferentes deles próprios; do seu desejo de participar no processo político com vista a promover o bem público e a responsabilizar as autoridades políticas; da sua prontidão para mostrar autodomínio e para serem pessoalmente responsáveis nas suas exigências económicas e nas suas escolhas pessoais que afectam a sua saúde e o meio ambiente. Sem cidadãos que tenham estas qualidades, as democracias tornam-se difíceis de governar, e até instáveis.» Will Kymlicka, Filosofia Política Contemporânea, 2002, p. 285.”. (In Arte de Pensar, Desidério Murcho)